Após um ano e
meio de estudos, socióloga aponta que maior índice de bancarização vem mudando
a forma de vida da população das classes mais baixas. Pouca educação financeira
ainda gera problema
Muito tem se
falado atualmente sobre a chamada Nova Classe C, que obteve um incremento de
renda nos últimos anos. No entanto, não foram apenas o aumento do salário
mínimo e a implantação dos programas sociais que determinaram este fenômeno,
mas, também, um maior acesso às
opções de crédito e aos bancos nesta parcela da população.
Este é o assunto debatido pela socióloga e pesquisadora da USP, Cláudia Sciré,
no livro “Consumo Popular, Fluxos Globais”, editado pela Annablume. A obra é
fruto de um ano e meio de estudos com moradores do bairro do Campo Limpo, na periferia de São
Paulo.
A principal questão levantada por Cláudia Sciré é como as pessoas lidam hoje
com o que ganham e com os cartões
de crédito que, na maioria das vezes, oferecem limites superiores às
rendas das famílias. “As pessoas hoje possuem vários cartões de crédito, cada
um com um limite bem maior do que elas ganham no mês. Alguns lidam muito bem
com isso, mas muitos acabam se endividando”, explica a autora, em entrevista ao
Mundo do Marketing.
A pesquisadora aborda ainda os hábitos de consumo dos moradores da periferia e
discute sobre a necessidade de se investir em educação financeira. “Muitas
pessoas ainda não entendem que o cartão de
crédito não deve ser utilizado como um complemento para a renda”, explica. Leia
a entrevista na íntegra.
- Mundo do Marketing: Como o acesso ao crédito vem impactando na mudança de
vida da população das periferias?
Cláudia Sciré: Estamos diante de um processo de dois eixos: de um lado
este acesso ao crédito, que proporciona um incremento na renda e o aumento
gerado pelo crescimento da economia e dos programas do Governo. Do outro lado
temos o fato de as empresas estarem se voltando para o hoje denominado
público de baixa renda ou Classe C, e desenvolvendo produtos para atendê-los. O
Shopping Campo Limpo é um desses exemplos.
- Mundo do Marketing: Quais são as principais facilidades de crédito que
essa parcela da população tem hoje?
Cláudia Sciré: O que acontece é que antes a Classe C não tinha tanto
acesso a estas facilidades porque a taxa de bancarização era menor. Hoje temos
um aumento neste índice, o que coloca um maior número de pessoas em contato com
os bancos que vão oferecer os serviços básicos de cartões de crédito.
Percebemos que esse limite é, muitas vezes, três ou quatro vezes superior à
renda mensal das famílias. Não se trata apenas possuir um crédito, mas ele é
muito amplo e isso não apenas através de um canal, que é o banco, mas ainda se
tem um formado pelas redes varejistas, que possuem seus próprios cartões e que
permitem créditos a mais e possibilidades de parcelar, além das financeiras.
Tudo isso contribui para que elas possam gerir os seus gastos de uma maneira
diferente do que era no passado. Antes faziam o uso do carnê, mas o cartão dá a
possibilidade de parcelar em muitas vezes sem os juros.
- Mundo do Marketing: Como essas pessoas lidam com a sua renda?
Cláudia Sciré: Por se tratar de um processo novo, é comum que elas ainda
estejam aprendendo a lidar com isso. Nós mesmos temos uma imensa dificuldade de
entender como é feita a cobrança dos juros nos cartões de crédito. Todo o
sistema financeiro, de certa forma, já inibe uma busca maior de informações. A
partir do momento em que se tem esse acesso facilitado, as pessoas começam a
usar, porque existe o desejo de consumir. As consequências que observei foram
muitos casos nos quais as pessoas se descontrolam. Há aqueles que gerem muito
bem as dívidas e vão contornando as situações, ou seja, há meses em que pagam a
prestação de um cartão para continuar usando, outros meses pagam a de outro. Há
muito desse jogo de cintura, onde elas vão se virando, mas também há aqueles
que não conseguem e acabam se endividando.
- Mundo do Marketing: Como as pessoas lidam com a questão do nome sujo?
Cláudia Sciré: O que vemos hoje é que essa questão de sujar o nome já não
é uma mácula na vida. Isso porque também é muito fácil limpar. A vida passa por
esses estágios onde, uma hora estão com o nome sujo, outra hora com o nome
limpo. Quando as pessoas estão com restrições acabam pedindo emprestado o
cartão de alguém para continuar dentro desse ciclo de facilidades que o crédito
oferece. Há ainda os casos em que elas esperam que a dívida expire. Quando se
trata de uma rede varejista, é do próprio interesse dessas empresas de que a
pessoa volte a consumir. A vida passa a ser gerida com base nesses compromissos
que têm com o mercado e com esse jogo de cintura para administrar esse crédito
super ampliado.
- Mundo do Marketing: As pessoas usam o cartão de crédito como um
complemento de renda?
Cláudia Sciré: O cartão sempre estoura o que elas ganham, porque com um ou
dois salários mínimos, que era o que os meus entrevistados ganhavam na época,
não é possível sobreviver, então, eles lançam mão do cartão de crédito para dar
conta dessas inúmeras demandas que possuem e ter uma vida digna.
- Mundo do Marketing: Até que ponto esse crescimento da Classe C é um
aumento de renda real e, até que ponto, está ligado à ampliação da oferta de
crédito?
Cláudia Sciré: Houve um incremento da renda que não pode ser negado, por
conta do aumento do salário mínimo, dos programas sociais que o governo Lula
ofereceu. Tudo isso estimula a renda e faz a economia crescer. Só que, mais do
que isso, um outro motor desse processo é a ampliação do crédito. O que
precisamos questionar é: as pessoas estão consumindo, mas também estão se
endividando e isso tem conseqüências futuras que ainda não sabemos bem quais
são.
- Mundo do Marketing: Como são as práticas de consumo entre os jovens?
Cláudia Sciré: Metade da minha mostra era de jovens de 16 a 18 anos.
Muitos deles já trabalham ou já têm filhos. São pessoas que começaram cedo no
mercado de trabalho e que também se deparam com esse mundo de maravilhas
prometido pelo cartão de crédito. Muitas vezes eles já ingressam tendo que
abrir uma conta bancária. Muitos mencionaram que foram ao banco e foram
questionados se queriam um cartão de crédito e aceitaram. Isso faz com que os
jovens ganhem uma maior independência na hora de negociar com a família. Os
filhos sempre ajudaram nas despesas da casa, mas, a partir do cartão de
crédito, eles têm um controle maior da renda e também podem assumir gastos,
como seus pais, que superam o valor do que ganham. Eles gastam muito com roupas
e com calçados, com saídas à noite. Trata-se de uma série de desejos reprimidos
e os jovens chegam com essa ânsia de ter as coisas. Alguns dizem que se
tornaram pessoas somente após terem um cartão de crédito.
- Mundo do Marketing: O que significa o cartão de crédito para essa parcela
da população?
Cláudia Sciré: Ele significa, primeiro, a chave de acesso a um mundo de
facilidades do consumo que o carnê não permite, porque a pessoa pode comprar de
uma forma facilitada. Hoje se pode ter tudo, independente da renda. Vejo o
cartão hoje como um artefato que circula dentro das próprias famílias e que
altera as redes relacionamento entre as pessoas. Ele reconfigura esses
relacionamentos. Pessoas emprestam seu nome a outras para comprar e isso afeta
o jogo de relações no mundo popular, porque, muitas vezes, os compromissos não
são honrados e muitos sujam os nomes de outros, ocasionando uma quebra nas
relações.
- Mundo do Marketing: Quais foram as principais alterações de hábitos de
consumo que a senhora percebeu neste estudo?
Cláudia Sciré: Primeiramente, o que mudou foi o acesso aos bens de consumo
e uma rotatividade, ou seja, as pessoas trocam seus móveis e eletrodomésticos
com uma maior facilidade do que trocavam antes. O que vemos hoje são as casas
super bem equipadas, embora por fora as fachadas ainda estejam em construção.
Mais do que isso, temos uma reconfiguração na própria maneira de viver a vida.
As pessoas pautam as suas ações futuras com base nos compromissos assumidos com
o mercado. Trabalha-se para pagar as dívidas. É uma realidade que está lado a
lado com o que está acontecendo em todo o país. Vivemos em uma sociedade de
consumo, onde o mercado lança estímulos e as pessoas cedem a eles. O que
acontece é que hoje quase tudo é possível.
- Mundo do Marketing: Quais são as principais prioridades que as pessoas dão
para gerir o orçamento doméstico?
Cláudia Sciré: A primeira coisa é pagar as contas em dia, de água, luz,
alimentação. As pessoas raramente compram alimentos a prazo, porque, por se tratarem
de artigos de consumo imediato, raramente são comprados para pagar mais tarde.
Logo depois disso vêm as faturas do cartão de crédito, cada uma dentro da sua
prioridades. Em alguns casos é usado o crédito rotativo. Todas as pessoas estão
pagando ao menos um eletrodoméstico. Depois do cartão, a prioridade é para o
pagamento de empréstimos bancários.
- Mundo do Marketing: É comum a utilização dos empréstimos para tapar o buraco
que o cartão de crédito faz no orçamento?
Cláudia Sciré: Muitos utilizam os empréstimos nas financeiras para pagar suas
dívidas. Com isso, acabam se endividando cada vez mais e a situação se
transforma em uma bola de neve. Tive entrevistados com dívidas que
ultrapassavam os R$ 20 mil por causa desse descontrole. O que falta no país
também são políticas públicas de educação financeira. As pessoas, muitas vezes,
não entendem que o cartão de crédito não é um complemento da renda.
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